Quem tem medo da ‘ideologia de género’?
Maria Manuel Baptista
CLLC Universidade de Aveiro
As campanhas ‘antigénero’ começam já por meados da década de 90, como reação às conferências do Cairo (1994) e de Pequim (1995), culminando com a publicação em 2003 da obra Lexicon: Ambiguous and Debatable Terms Regarding Family Life and Ethical Questions (Schooyans, et al, 2006). Desde então, com os movimentos ultraconservadores e nacionalistas espanhóis que levam a dianteira neste aspeto, e com o apoio da Igreja Católica Romana, inicia-se na Europa um movimento antigénero que, com ramificações diretas ou indiretas a nível internacional, se espalhará no período de uma década até à Rússia.
A organização económica capitalista, a política conservadora de direita e o conservadorismo religioso encontram então no género uma espécie de referente vazio contra o qual se batem, dando a impressão de uma frente unida em prol do retorno do ‘bom-senso’ e do ‘equilíbrio’, de uma atitude ‘comedida’ numa situação em que, como dizem, ‘já foi longe de mais’.
Interessa-nos, em primeiro lugar, perguntar porque tem surgido no espaço público mundial o conceito de ‘ideologia’ articulado às questões de género? Com efeito, o conceito de ‘ideologia’ remete, desde Marx, para a ideia de uma ‘falsa consciência’ (Marx, 2017 / 1867). O discurso que articula este conceito às questões de género defende que se trata de ‘desnaturalizar’ o sexo, operação que se encontraria exclusivamente condicionada a interesses políticos em ação na ‘ideologia de género’. Ficamos, no entanto, sem saber que interesses obscuros e inconfessáveis seriam esses e a quem deveriam ser alocados: trata-se de interesses de classe? de grupo económico? interesses das mulheres? de grupos LGBT excluídos?…
Pelo contrário a ‘verdadeira consciência’, no que ao género diz respeito, seria que este se dividiria em apenas dois tipos fundamentais – masculino e feminino – e que os papéis sociais que lhes correspondem são determinados pelo sexo biológico, ou seja por formas de hierarquização e poder, sobre as quais estariam de acordo uma pretensa biologia totalmente alinhada com o sistema económico capitalista, mas também o pensamento conservador e religioso que opera no quadro de uma ontologia e axiologia com base numa verdade atemporal e a-histórica.
Testemunhando o crescimento internacional das campanhas contra a designada ‘ideologia de género’, um estudo publicado em 2017 realizou uma cartografia das Campanhas anti-género na Europa, procurando estudar o que designou por ‘mobilização contra a igualdade’. Neste livro editado por Kuhar e Paternotte, os autores entendem o fenómeno numa dimensão tripla: enquanto discurso, enquanto estratégia e enquanto fenómeno nacional, presente sobretudo em países europeus como a Espanha, França, Bélgica (francófona), Irlanda, Itália, Alemanha, Áustria, Eslovénia, Polónia, Croácia, Hungria e Rússia.
Apesar das muitas diferenças de contexto entre estes países (nalguns a discussão começou até por ser quase confidencial enquanto noutros passou-se rapidamente a uma atividade pública intensa), há alguns elementos comuns a todos eles no que diz respeito às autodenominadas campanhas contra a ‘ideologia de género’. São eles os alvos, os atores, as estratégias e os tropos retóricos.
De acordo com os investigadores, o processo mais comum de formação dos grupos antigénero parte de uma mobilização contra medidas dos governos nacionais que transpõem recomendações internacionais, tendo como alvos ativistas feministas, movimentos LGBT e elites específicas (Kuhar e Paternotte, 2017, p. 256). Noutros casos os movimentos surgem no sentido de evitar políticas públicas de género. No que respeita aos alvos, eles atacam ‘essencialmente a cidadania sexual: tópicos relativos ao controlo do próprio corpo, às possibilidades de autorrealização através da sua própria identidade e proteção social no contexto do reconhecimento de relacionamentos (não-heteronormativos)’ (ibidem).
No entanto, a estes itens centrais pode-se juntar, conforme os contextos concretos, cinco clusters temáticos detetados pelos investigadores: os direitos LGBT (casamento e adoção por casais do mesmo sexo), os direitos reprodutivos (contraceção e aborto – este por vezes ligado à eutanásia, sob o guarda-chuva conceptual de ‘cultura de morte’ – e tecnologias reprodutivas), a educação sexual e de género (temendo-se um estímulo a comportamentos sexuais desviantes e sexualização das crianças, bem como estímulo a papeis de género não tradicionais, defendendo a educação das crianças para valores religiosos no seio da família; pretende-se ainda substituir a designação de ‘violência de género’ por ‘violência doméstica’), os estudos de género (que gastam dinheiros públicos e não são suficientemente científicos, enviesando interpretações e forjando dados que discriminam os homens e destroem a família) e a democracia (pois destabilizam a vida pública ao não tomar e consideração as naturais diferenças entre homens e mulheres, tornando-se uma ideologia totalitária, das elites, e, por isso, antidemocrática).
Seguindo ainda o estudo de comparação intercultural que temos a vindo a referir (Kuhar e Paternotte, 2017), os atores destes movimentos antigénero na Europa são muito diversos e apresentam constelações variáveis, em função dos contextos específicos: “associações de famílias, grupos antiaborto, conservadores religiosos, representantes da Igreja Católica, nacionalistas e populistas, grupos de extrema direita, entre outros” (p. 259). Em qualquer dos casos, estruturam-se em função do que os autores designam de 3 N’s, “que operam como portas de entrada para o movimento: a Natureza, a Nação e a Normalidade” (pp. 259-260). Acresce a estas entradas o fator religioso, principalmente a igreja católica, mas não apenas, sobretudo nos países onde o seu prestígio é maior, mantendo-se um pouco mais discreta onde ele é menor.
Por fim, os autores do estudo sublinham que a estratégia destes grupos antigénero não é nem antiquada nem discreta, mas colorida, alegre e feliz, capturando mesmo elementos das Paradas Gay, usando agora música thecno e uma imagem moderna, pop, hip e jovem. Para além disso usam intensa e massivamente a internet e as redes sociais, promovendo potentes lobbies nacionais e internacionais. No que diz respeito aos tropos retóricos, procuram estimular diversas formas de ‘pânico moral’, trabalhando frequentemente o enquadramento da ‘criança inocente’ vítima da ‘ideologia de género’ (p. 265).
Um pouco por todo o mundo a expressão ‘ideologia de género’ entrou no espaço público e principalmente no debate político. A expressão parece responder a uma questão que afinal ninguém coloca explicitamente, mas à qual é preciso retornar para compreendermos de que falamos quando falamos em ‘ideologia de género’. E essa pergunta é uma só: estamos disponíveis para criar uma comunidade em que todas as vidas valham a pena ser vividas? E mais especificamente, em nome de quê algumas vidas merecem ser menos vidas do que outras?
A resposta de Judith Butler a esta questão é muito clara: “(Se) ao nível do discurso, certas vidas não são consideradas vidas, não podem ser humanizadas, não se encaixam no quadro dominante para o humano e (…) a sua desumanização ocorre, em primeiro lugar neste nível, (…) dá origem a uma violência física (…) [e] em certo sentido entrega a mensagem de desumanização que já está em ação na cultura” (Butler, 2018/2004, p. 35).
Trata-se, enfim, de discutir os limites do humano, questão cara quer à filosofia desde os seus primórdios gregos, mas também interrogação central nos discursos religioso, médico, psicológico, etc.
O que nos propomos fazer neste VII Congresso Internacional em Estudos Culturais é enfrentar esta questão, mas não partindo de um quadro histórico, social e político abstrato e idealizado. Como é próprio dos Estudos Culturais (contexto teórico a partir do qual desenvolveremos a abordagem a esta questão) pretendemos indagar a materialidade política, económica, social e histórica que as questões de género e as suas performatividades convocam e articulam em tempos de democracia ameaçada.
Em face deste quadro, que reconhecemos não apenas na Europa, mas em muitas partes do mundo, e que é transversal a diversas coordenadas histórico-culturais e diferentes regimes políticos, somos forçados a concluir que as problemáticas de género, os estudos de género, as políticas que promovem a igualdade e liberdade de género parecem atingir algo de muito profundo nos seres humanos e na forma como estes se organizam, distribuindo desigualmente o poder. É o que nos revela a magnitude e violência dos movimentos antigénero, cuja atividade sinaliza precisamente que o Rei vai nu, mas que, por outro lado, se pudermos silenciar essa evidência, é como se ele continuasse vestido e o elefante não estivesse no meio da sala.
É neste contexto cultural e político que o VII Congresso Internacional em Estudos Culturais, subordinado ao tema Performatividades de Género na Democracia Ameaçada pretende suscitar propostas de debate e performances em torno dos seguintes eixos fundamentais:
- Género, entre o real e o virtual nos espaços (in)formais: censura, discursos de ódio nos media e o capitalismo tecnológico;
- Performances sociais de género: patriarcado, construção das masculinidades e corpos nos espaços público e privado generificados;
- Corpos dissidentes, tecnocorpos, transhumanos e pós-humanos: resistências políticas produzidas pelo e no corpo;
- Feminismos e Dissidências: raça/etnia e interseccionalidade, ciberfeminismos e ecofeminismo;
- Corpos, Economia do Sexo e Saúde: direitos, prazeres, autonomias e violências;
- Políticas públicas, género, sexualidade e agenciamento no contexto educacional: formação de professores, educação sexual e cidadania como resistências e estratégias de não normalização.
Referências bibliográficas
Butler, Judith. (2018/2004). “Violência, Luto, Política” [“Violence, Mourning, Politics”], Baptista, M. M. (Org.), Género e Performance: Textos Essenciais 1. Coimbra: Grácio Editor, pp. 21-51.
Kuhar, R., & In Paternotte, D. (2017). Anti-gender campaigns in Europe: Mobilizing against equality. London & New York: Rowman & Littlefield International.
Marx, Karl. (2017/1867). O Capital, Lisboa: Edições 70.